Do tratamento das referências próprias e estrangeiras

Na quinta edição do Festival Internacional de Artes Performativas Programme Commun, realizado em Lausanne, Suíça, três convidados do COINCIDÊNCIA vindos da América do Sul se encontraram. Os três programadores falaram sobre possibilidades e dificuldades do planejamento intercontinental e da difusão da arte.
Escrito por Katja Zellweger
«Nós recebemos dois mil dólares de subsídio estatal por ano.» A roda de conversa sorriu compreensivamente. «No nosso caso, o Estado vendeu tudo para isso – não existem produções culturais fomentadas pelo Estado, por assim dizer.» Acenam as cabeças que conhecem a situação. Assim decorreu o almoço em que a delegação do COINCIDÊNCIA compartilhou vivamente experiências sobre seu campo de trabalho em comum.
A constituição da delegação não poderia ser mais diversa: Cristina Castro é uma dançarina e coreógrafa de Salvador, Brasil, que em 2005 fundou o Festival Internacional Vivadança e organiza-o desde então. Pamela López administra na capital chilena o programa do centro cultural Gabriela Mistral (GAM), que é majoritariamente subsidiado por financiadores privados. Além disso, ela leciona administração cultural na Universidade de Santiago. O italiano Pierpaolo Olcese, que vive na Argentina, está firmemente enraizado na grande cena livre de Buenos Aires com sua casa de espetáculos chamada Galpón de Guevara. Ele também é o encarregado pela programação e organização do Festival Internacional de Circo Independiente (FICI).

Festivais como centros de difusão de arte contemporânea
Cristina Castro reconhece a importância de planejar festivais com muita antecedência. O festival liderado por ela, Vivadança, recebe do Estado da Bahia um apoio assegurado por longo prazo, uma raridade e também uma exceção no Brasil, como ela frisa. «Esse apoio, mesmo que seja pequeno, precisa ser recebido. Ele nos permite realizar planejamentos melhores e, especialmente, poder convidar grupos estrangeiros, o que é um componente importante do nosso festival.»
Desde que no novo governo de Bolsonaro o Ministério da Cultura foi rebaixado para o patamar de secretaria, não existe mais nenhum plano efetivo de apoio a festivais. Além disso, as leis que vinculam grandes empresas ao financiamento cultural através da redução de tributos foram visivelmente flexibilizadas e, por conseguinte, uma importante contribuição deixou de existir.
Em um país como o Brasil, que tem proporções continentais, turnês não são fáceis de realizar. «Nós não possuímos nem boas estradas para fazer turnês através das cinco regiões do Brasil, nem um planejamento de fomento para turnês nacionais na área das artes cênicas.» O festival Vivadança, que ocorre no nordeste do Brasil, se situa geograficamente fora do eixo central dos eventos culturais. Realizar turnês na Bahia também significa colocar o nordeste do país nesse eixo e, com isso, aprofundar o conhecimento sobre a cultura brasileira, diz Castro. «Assim, nosso festival permite que os artistas da região da Bahia se conectem a redes e a debates. Por esse motivo, eu vejo os festivais como centros de difusão, sobretudo de arte contemporânea.»
Outro ponto levantado por Castro é o do enfrentamento elementar e fortalecido das raízes culturais de uma sociedade. Especialmente em Salvador, a primeira capital do Brasil, fundada em 1549 pelos colonizadores, há um grande legado da cultura e da dança africanas. «O tema é muito importante. Nós buscamos e criamos as nossas próprias referências», diz ela, que lança um olhar retrospecto para sua própria formação de dança, marcada por uma orientação bastante europeia. Por isso, os festivais, em especial, teriam a responsabilidade de fornecer novos pontos de referência artística.
O eterno estigma do circo
Pierpalo Olcese tem a grande vantagem, tal como Castro, de poder convidar produções, como a performer suíça Simone Aughterlony ou a Companhia Alias, do brasileiro Guilherme Botelho, ativa em Genebra, que falam uma linguagem universal – dança, physis e brincadeiras clownescas não necessitam de tradução. Em contrapartida, outros ajustes são necessários: no Galpón de Guevara são mostradas em média oito produções diferentes por semana, que permanecem na mesma sequência por várias semanas. Nesse ritmo, quase não é possível acomodar uma produção internacional convidada. No festival circense, no entanto, há uma outra disposição. Mesmo assim, sempre é preciso comunicar aos convidados estrangeiros o que é possível e o que não é: «não conseguimos ajustar nossas instalações de luz e, às vezes, também precisamos improvisar. Quando, em junho do ano passado, vimos nosso orçamento sendo cortado quase pela metade no período de algumas semanas, tivemos sorte que todo mundo mostrou muita compreensão e compareceu assim mesmo».
No mundo performático (europeu), Olcese precisa tratar do eterno estigma aderido às artes circenses. Na Argentina, no entanto, a tradição do «clown criollo» é muito enraizada. Isso significa que, frequentemente, a arte clown pode ser vista até mesmo nas ruas, o que leva a «salões lotados», diz Olcese. «Ainda que por causa da inflação a nossa receita em espécie tenha caído cerca de 70%, a venda de entradas está subindo.» Olcese também reconhece tamanha apreciação pelo clownesco na Argentina na preferência pelo naturalismo e pelo tema família, onipresente nos bastidores dos espetáculos. «Na Suíça e na Europa, em contrapartida, eu sinto falta do velho metiê da ação teatral. O tipo de teatralidade, como o aprendi enquanto assistente de Brenno Besson, aluno de Brecht, eu vejo muito pouco hoje em dia.»
Trocas entre instituições
Oclese faz uso da internacionalização na medida em que ele torna fecundas as diferentes aptidões das respectivas cenas. Assim ele organiza, no âmbito dos festivais circenses, residências e cooperações entre clowns argentinos e dramaturgos circenses europeus. Castro também se entusiasma com o modelo de sucesso das residências, colaborações internacionais e coproduções: «os desafios são muito produtivos e inspiradores. Projetos como esse exigem muita adaptação e é necessário encontrar e utilizar denominadores comuns». Por outro lado, Pamela López, promotora de programação do GAM em Santiago do Chile, está interessada na ideia das residências que não são passíveis de obrigatoriedade de produção. «Para isso não há estrutura de financiamento no Chile.»
Na visita ao Théâtre du Vidy, López teve outra ideia para uma possibilidade de cooperação. «No âmbito da administração cultural dos espaços de eventos, a sinergia poderia ser melhor empregada. Eu imagino o seguinte: uma pessoa sai de uma instituição, como o GAM chileno, e vai para o Vidy, que do ponto de vista estrutural é parecido. Lá ela faz uma espécie de estágio em administração durante duas semanas, para conhecer melhor as estruturas de trabalho de uma casa que realiza as próprias produções. Assim poderia surgir uma troca intercontinental entre instituições.» Com as turnês de suas próprias produções, o Vidy gera aproximadamente 20% de sua receita. É um sistema, de acordo com López, que poderia ser frutífero enquanto modelo para cooperações institucionais. Afinal de contas, López e o GAM também refletem sobre possibilidades significativas de trocas, como plataformas virtuais e redes comuns para digitalização de conteúdo.
Por falar em produções do Programme Commun – das quais muitas estão em turnês internacionais bem-sucedidas, como as de Ntando Cele e Stefan Kägi / Rimini Protokoll da Suíça ou Angélica Lidell da Espanha, Thomas Ostermeier da Alemanha, Jérôme Bel da França, ou Samira Elagoz da Finlândia – López acredita que as cenografias e os mecanismos de produção, às vezes, podem causar problemas para o planejamento de turnês. Embora uma obra como «Granma. Les trombones de La Havane» (Granma. Os trombones de Havana), sobre a revolução cubana, possa ser interessante e promissora para o público chileno, ela não situa o tema das ideologias socialistas degradadas como exclusivas para a América do Sul. «A peça documental combina com o contexto europeu justamente porque ela traz ao público aspectos de outras culturas. Esses temas transculturais e o interesse por outros contextos sociais sempre chamam a minha atenção no teatro europeu, pois venho de uma cultura muito homogênea.»
O festival Programme Commun, que desde 2015 ocorre anualmente em Lausanne, na Suíça, mostrou neste ano 17 produções. O programa do festival de artes performativas foi de responsabilidade das direções artísticas das casas de eventos Théâtre du Vidy, Arsenic e Théâtre Sévelin.
Os promotores de eventos convidados pela Pro Helvetia foram:
Cristina Castro, Brasil: Dançarina e coreógrafa que fundou em 2005 o Festival Internacional Vivadança em Salvador, na Bahia, à frente do qual ela atua como diretora e curadora artística. Desde 1998, ela também é parte da comissão do programa de dança do Teatro Vila Velha de Salvador. Em 2012 e 2016, ela foi jurada do Festival de Dança Solo, em Stuttgart (Alemanha).
Pamela López, Chile: Ex-dançarina e administradora cultural, é diretora de programação do centro cultural Gabriela Mistral (GAM) em Santiago do Chile. Em 2018, ela foi parte do comitê curatorial do Fringe Festival na Escócia. Ela leciona administração cultural na Universidade de Santiago.
Pierpaolo Olcese, Argentina/Italy: Fundador e diretor do Galpón de Guevara, uma casa de eventos e produção para a cena livre de teatro, dança contemporânea e physical dance, bem como circo contemporâneo. Em 2016, ele fundou, juntamente com Leticia Vetrano, o Festival Internacional de Circo Independiente (FICI).