«Pensar / Transferir / Agir » – Entrevista comTRANSFER Global Architecture Platform

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TRANSFER Global Architecture Platform: Isabel Concheiro & Anna Hotz
Carolina Martinez
Data
Agosto de 2020
Por Carolina Martinez
Nos últimos meses, o mundo inteiro contou uma história coletiva sem ter combinado nada antes. Geralmente, as diversas histórias e acontecimentos que ocorrem em lugares diferentes são reunidos sob uma narrativa comum que é interpretada como a realidade de um momento, espaço e tempo.
O programa «COINCIDÊNCIA», quer, neste momento, possibilitar o encontro de ideias, anseios, medos, críticas e diversas formas de expressão humana e artística para, em conjunto, discutir que novas formas, modelos e linguagens podemos projetar para um mundo pós-coronavírus.

CAROLINA MARTINEZ: Estamos em um período de adaptação coletiva, uma situação e momento em torno dos quais têm se refletido bastante sobre o impacto individual e global, e onde estamos conseguindo ver uma mudança. Podemos reconhecer algum perigo nesse movimento? Onde e de que maneira isso se manifesta?
ISABEL CONCHEIRO: Prefiro falar sobre oportunidade do que perigo. Crises são oportunidades para refletir, questionar e mudar. O principal perigo seria que, após essa crise global de saúde, e as crises social e econômica a ela relacionadas, nada, ou muito pouco, mudasse fundamentalmente. Essa crise é uma oportunidade chave para repensar globalmente a ordem econômica mundial que levou à última crise financeira e ambiental e que pode levar a crises ainda mais profundas.
CM: A abertura daquilo que acontece nos campos da arte e da ciência e, em geral, do conhecimento, é possível graças à comunicação e, sobretudo, à transmissão, que é ao que o «COINCIDÊNCIA» se propôs desde o começo do programa. Nesse sentido, a troca de diálogos se manifestou através de viagens, residências, exposições e outros projetos: instâncias que hoje têm que buscar uma reconfiguração. Diante desse novo cenário, como você acredita que poderíamos, hoje e no futuro, conseguir essa troca?

IC: Os formatos físicos de troca são e ainda serão reduzidos por um tempo, mas essa situação, esperamos, não vai durar. Penso que a situação atual é uma grande oportunidade para criar novos formatos digitais de intercâmbio e para desenvolver mais aqueles já existentes. Eu acho que eles não substituirão, mas sim complementarão os formatos físicos no futuro, e provavelmente os evoluirão. O digital tem um enorme potencial de transmissão de conhecimento em escala global e, nesse sentido, acho que é muito importante que governos e instituições culturais apoiem o desenvolvimento de projetos culturais com uma perspectiva global para a troca e produção de conhecimento. Esse é um aspecto muito interessante do programa COINCIDÊNCIA e uma das metas fundacionais do nosso projeto editorial digital TRANSFER Global Architecture Platform.
CM: A instabilidade que o mundo e cada um de nós está sentindo nos torna conscientes de nossa fragilidade, na qual o futuro ganha um novo significado. Paramos juntos e estamos vivendo um tempo que poderíamos denominar «de espera». Como esse presente tem sido manifestado em seu trabalho? É possível pensar no futuro e, assim, imaginar novos contornos possíveis para os seus projetos?
IC: Penso que este é um momento fundamental para trazer ao primeiro plano questões urgentes de diferentes disciplinas. Da nossa perspectiva como arquitetos e editores, é o momento de levantar questões importantes sobre o atual modelo de globalização, os impactos do aquecimento global, a necessidade de melhorar as condições habitacionais e repensar o atual modelo de cidades, isso só para citar alguns exemplos. Para lidar com essas questões, durante os últimos três meses nós conceituamos, configuramos e lançamos uma nova seção em nossa plataforma digital TRANSFER, intitulada TRANSFER NEXT com o objetivo de compartilhar ideias sobre os desafios globais atuais e futuros para a sociedade e a arquitetura à luz da situação atual. Para isso, convidamos autores reconhecidos na área de arquitetura e planejamento urbano, como Juhani Pallasmaa, Nader Tehrani ou Rahul Mehrotra, e também cineastas de todo o mundo para contribuir com essas séries na forma de artigos, conversas e vídeo-ensaios.
É claro que este período tem implicações no caso específico da participação do TRANSFER no programa COINCIDENCIA. Depois de uma primeira viagem à Colômbia e ao Chile no ano passado, a fim de estabelecer as bases para organizar um evento público relacionado à arquitetura, a situação atual nos levou a focar na produção de conteúdo originais sobre temas arquitetônicos e urbanos da América do Sul, com base nas trocas extremamente interessantes que tivemos com arquitetos e urbanistas durante a viagem. A publicação deste conteúdo certamente ajudará a estabelecer as bases dos principais tópicos e questões a serem desenvolvidos em formatos físicos de intercâmbio no futuro.
CM: O confinamento ao qual uma grande parte do mundo está forçada levou à implementação não apenas de novas estratégias de comunicação e interação, mas também, e acima de tudo, de sobrevivência. Em muitos países, e especialmente na América Latina, já estão sendo observados os primeiros efeitos do que virá a ser a pior crise econômica em décadas, que levará as pessoas a deixarem suas casas ou morarem com outras pessoas, por exemplo. Se a habitação é a primeira necessidade humana a ser solucionada, e agora isso não é mais uma certeza futura para algumas pessoas, é possível hoje ver novas maneiras de pensar sobre o espaço urbano e diferentes soluções habitacionais que propõem modos de vida que não eram contemplados? Que tipos de investigações estão sendo realizadas sobre isso?
IC: Essa pandemia tornou ainda mais visíveis os problemas e desigualdades cruciais na habitação em todo o mundo. A habitação é um direito – embora ainda não garantido para todos -, e essa experiência deixou claro que a habitação boa e de qualidade também deve ser um direito. Os padrões de habitação devem ser garantidos, mas esses padrões devem evoluir e incorporar a qualidade arquitetônica e a reflexão sobre novos modos de viver, a maneira como a casa se relaciona e se expande para o exterior, aspectos ambientais… O design da habitação é um problema arquitetônico, mas os mecanismos da produção habitacional são uma questão política e econômica, que deve ser tratada por atores diferentes. Atualmente, falamos sobre a necessidade de um novo Green Deal (Acordo Verde) – o que é absolutamente fundamental, mas precisamos também falar de um novo Housing Deal (Acordo Habitacional). Penso que uma questão crucial é a crescente financeirização da habitação desde a década de 1970, que contribuiu fortemente para a crise global da habitação e da economia em 2008, e poderia levar a crises futuras, com profundas implicações sociais, econômicas e ambientais em todo o mundo. A habitação deve estar no topo das agendas políticas, como um direito e um local pensado para as pessoas viverem, e não como um ativo financeiro no qual se investir.

CM: A arquitetura trabalha em torno do corpo e sua relação com o espaço, onde também influencia o tempo, uma relação que, hoje, está totalmente deslocada. Quais são os principais desafios de uma disciplina que trabalha diretamente com elementos tangíveis e mensuráveis? Se a realidade, o espaço e o tempo estão sendo perturbados pelas atuais condições de vida, de que novas maneiras a arquitetura e outras atividades podem atuar, visando o desenvolvimento social e a melhoria da vida das pessoas, sem ameaçar distorcer a realidade? E como seria possível transmitir essas ações e novos conhecimentos?
IC: Penso que essa experiência nos conscientizou da importância do espaço, e também confirmou que o digital terá um papel cada vez maior, tanto na esfera privada quanto na pública. Isso não é de forma alguma uma contradição, e sim reforça o importante papel que a arquitetura e as disciplinas urbanas são chamadas a desempenhar. Como Yung Ho Chang explica em uma entrevista para a série TRANSFER NEXT, a «experiência arquitetônica pura», a experiência de espaços não banais, mas de qualidade, de cidades mais humanas e em contato com a natureza será muito importante. Os espaços de nossos lares onde podemos passar mais tempo e realizar diferentes tipos de atividades devem ser melhores, mais agradáveis, mais flexíveis, mais sustentáveis e mais conectados à natureza. A experiência física e os aspectos materiais da arquitetura não serão minimizados, serão ainda mais importantes em nosso crescente mundo digital.
