Entrevista com Boris Nikitin no FIBA 2023

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Boris Nikitin [CH] percorre os aspectos ambíguos da realidade. Examinando o formato documental dentro do teatro, o ator, diretor e escritor questiona o potencial manipulador desse gênero.
“É apenas uma questão de perspectiva”, diz ele. “E eu percebi que esse é o pré-requisito para entender a emancipação. Se eu posso negar a realidade como ela é e vê-la como uma construção social, isso significa que eu posso mudar alguma coisa. Eu posso ter um impacto na realidade, porque ela não está completa.”
Tais conceitos permeiam o trabalho do diretor, que apresentou dois espetáculos na edição de 2023 do FIBA – Festival Internacional de Buenos Aires. O programa reuniu uma seleção da cena contemporânea suíça, intitulada «Experiência/Suíça».
Boris integrou a mostra com duas peças muito diferentes, mas conectadas: «Hamlet», na qual Julian Meding assume o papel de um Hamlet contemporâneo, rebelando-se contra a realidade; e «Tentativa de Morrer», um solo em que o diretor explora sua vulnerabilidade e relata a perda de seu pai após uma luta contra a ELA (Esclerose Lateral Amiotrófica).

Na entrevista a seguir, concedida durante o FIBA, Boris fala de sua pesquisa sobre a realidade e o formato documental, as peças apresentadas no festival e «The Conversation Project», um processo de longo prazo de troca de textos com le artiste e curadore Diego Aramburo [BO]. O material final, que aborda as diferentes realidades ao redor da dupla (na Europa e América do Sul, atravessando a pandemia do Coronavírus), deve resultar em uma publicação.
Seu trabalho discute o formato do documentário e a maneira como ele retrata a realidade. Quando você começou a refletir sobre essas questões?
Eu acho que eu sempre tive interesse no formato de documentário, na encenação dele. É curioso que sempre se presume que as coisas retratadas num documentário são reais. E quando eu estava estudando em Giessen [DE], nos anos 2000, havia essa nova onda de teatro documental, com pessoas no palco falando sobre suas histórias e representando elas mesmas, com seus próprios nomes. Isso foi recebido como algo autêntico, não ficção, não atuado. E aí pode se correr o perigo de reduzir as possibilidades do que uma pessoa pode ser.
Então, eu estava pensando muito sobre o potencial manipulador do gênero documentário, e foi assim que meu trabalho começou, vendo documentário e propaganda como irmãos. É apenas uma questão de perspectiva. E de alguma forma eu transferi isso para toda a ideia de como nós percebemos a realidade como uma experiência cotidiana, como somos ensinados isso.
Pode ser que minha experiência de ser gay, mas esconder isso quando era adolescente, disfarçar, pensando que eu não era como eu deveria ser, talvez eu tivesse que rejeitar esse conceito de normalidade. Então, isso levou a essas reflexões, de que talvez as coisas que te dizem ser reais sejam muito mais ambíguas.
Você acha que isso tem a ver um pouco com a sua origem, vindo de culturas diferentes?
Sim, ultimamente eu comecei a pensar mais sobre isso, que poderia ser porque minha mãe é eslovaca, meu pai é meio francês, meio russo-ucraniano. Mas isso veio depois que eu tinha começado a reflexão sobre o documentário, era a cereja do bolo. Então pode ser que, sendo filho de imigrantes, a realidade sempre foi uma coisa ambígua para mim, porque a semiótica não é algo homogêneo.
Você diz que essa consciência de que a realidade pode ser falsa tem um efeito emancipatório. Como assim?
Eu estava muito interessado no fato de que o que nós assumimos como real é potencialmente fictício, porque você só pode falsificar algo que parece real. E, mais tarde, eu percebi que esse é o pré-requisito para entender a emancipação. Se eu posso negar a realidade como ela é e vê-la como uma construção social, isso significa que eu posso mudar alguma coisa. Eu posso ter um impacto na realidade porque ela não está completa.

Em seu trabalho, você discute o que é ficção ou não, e usa as ferramentas do teatro como estrutura, como forma de discutir a realidade.
Quando eu comecei a trabalhar nessa direção, eu usava o espaço teatral como um espaço real. Eu achei interessante brincar com a parte do teatro que as pessoas percebem como não ficção, a plateia e as conversas, com as luzes ainda acesas, e como isso poderia ser manipulado. É interessante como aceitamos a narrativa rapidamente, como nosso corpo e nosso cérebro se adaptam. Porque o teatro, de certa forma, é uma máquina de percepção. E a partir daí também o tomamos como uma experiência do mundo exterior, para discutir como a realidade é encenada. Isso me permite pensar no modo como o teatro foi construído com todas as regras, todas as hierarquias, e meu papel nele. É o modelo do espaço teatral expandido para o mundo exterior.
Em «Hamlet», você examina essas questões por meio de um personagem fictício muito conhecido. Qual foi a conexão com a peça de Shakespeare?
Um ponto de partida importante foi que, na peça de Shakespeare, há sempre esta pergunta, se Hamlet é realmente assim ou se ele está apenas fingindo. E eu achei isso muito interessante para as perguntas que eu tenho sobre a própria realidade. E Julien [Meding] é um artista com uma atitude particular, as pessoas às vezes se perguntam, será que essa pessoa é realmente assim? Por fim, eu queria brincar com isso em uma peça que finge ser não ficcional, mas que tem o título «Hamlet».
Eu acho que essa é a experiência que o público tem: é sério ou é apenas uma piada? E então eles têm que navegar pelas suas próprias emoções, talvez eles fiquem irritados e com raiva, mais tarde eles podem se identificar com esse personagem.
Eu gostaria de traduzir a questão shakespeariana “ser ou não ser” como: “ser e não ser ao mesmo tempo”. Não é uma pergunta, mas uma afirmação. Não é fictício nem real. São os dois ao mesmo tempo. Eu gosto disso como um conceito estético, mas também poderia derivar de uma ideia política de soberania; não para se adaptar completamente a um conceito de identidade ou realidade, mas para permanecer sempre um ator. No final, você poderia dizer: bem, é a liberdade.
Você mencionou como o público pode ficar desconfortável. Você acha que somos provocados também porque não há uma resposta correta, já que tudo é tão dúbio?
Pode ser. Nós trabalhamos muito para manter a performance de Julian tão ambígua quanto possível. E eu gosto muito dessa insegurança como um estado de espírito estético. Mas talvez algumas pessoas simplesmente sintam falta de mais clareza ou achem a performance muito repulsiva. E é interessante, nós estávamos falando sobre como nos identificamos ou não. Apesar de ser muito ambíguo, apesar de haver esse estilo de gênero ambíguo, acho que as pessoas se identificam de alguma forma. Não apenas com o personagem, mas com toda a ideia dentro dessas camadas.
A peça faz uma série de propostas diferentes para gerar identificação. Primeiro, levando as pessoas a pensar que vai ser uma performance muito irritante. Então, de repente, há uma transformação e as pessoas começam a se identificar, e muitas ficam muito comovidas.
Enfim, nós vivemos em um tempo definido tanto por imagens. Mas isso não é realidade. Isso são apenas imagens. E eu acho que é isso que as pessoas fazem no início da peça, elas veem a imagem forte de Julian. Mas não é uma imagem. É um processo, um relacionamento. Eu acho que isso tem a ver com o fato de que somos mortais. É sobre nosso corpo vivendo através de um tempo.
Você estava falando sobre mortalidade, e é muito interessante ver as duas peças, «Hamlet» e «Tentativa de Morrer», juntas. Porque elas são tão diferentes em estilo, mas as histórias estão entrelaçadas: você menciona a morte de seu pai em «Hamlet» e no solo. Como foi esse processo?
Nós tínhamos começado a trabalhar em «Hamlet» quando meu pai adoeceu, então eu não pude desconectar essas duas coisas. Pareceu natural usar meu trabalho artístico como uma possibilidade de canalizar todas as experiências, pensamentos e sentimentos, e organizá-los. Ao me apropriar da experiência da mortalidade e da morte, eu poderia colocar as coisas no papel e tentar fazer algo bonito com isso.
Um ano antes, eu mesmo fui parar no hospital porque eu tive um pequeno aneurisma. Mais tarde, fui a Atenas para um projeto, e me pediram para fazê-lo dentro de um hospital, e havia muitas pessoas idosas e doentes por perto. E um mês depois, meu pai recebeu o diagnóstico dele. Então, foi um tempo em que eu tive muita experiência e enfrentamento com a morte e a vulnerabilidade. Eu pensei que eu deveria compartilhar essa experiência, a coloquei em «Hamlet» e mais tarde em «Tentativa de Morrer».
E, ainda que você esteja lidando com a mortalidade, há sempre a questão do que é uma ficção: o gênero, a identidade, ou mesmo a doença do seu pai, de certo modo.
Sim. Quero dizer, claro que existe uma realidade evidente lá fora, e isso está muito ligado à nossa experiência física. Em geral, ao fato de que nós nascemos e vamos morrer. Eu acredito que o resto é interpretação. Eu acho que não há nenhuma realidade ou verdade sobre quem pode se casar com quem ou se o aborto deve ser permitido ou não. Essas são construções e ficções, e nós temos que debater isso.
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Em «Tentativa de Morrer», você ainda traz essa ideia de vulnerabilidade se tornando uma ferramenta, uma força.
Bem, isso aconteceu por acidente. Fomos convidados a Atenas em 2016 para apresentar «Hamlet», e me pediram para escrever uma nota do diretor. Eu estava pensando sobre a peça e como nós trabalhamos, como esse personagem está se expondo ao público, se tornando visível. E eu pensei, bem, visibilidade é vulnerabilidade porque você se expõe. Eu estava escrevendo essa frase, e de repente eu vi realmente piscar a palavra “habilidade”. E isso mudou completamente. Porque o teatro é o lugar onde podemos nos tornar propositalmente vulneráveis e transformar isso em uma habilidade.
Eu também fiquei pensando nos últimos dias do meu pai e como os médicos estavam perguntando o que nós queríamos ou o que ele queria. O que devemos fazer a seguir? E isso me estressou. Mas então eu pensei: quer saber, talvez não seja uma questão do que ele quer, mas do que esse corpo faz. E talvez nós não devemos lutar contra isso. Podemos confiar que o corpo saberá o que vai acontecer a seguir.
Ele tinha ELA, estava claro que não havia como voltar atrás. Então, é apenas desapegar. Foi um pensamento alentador, porque não há nada mais estúpido do que lutar contra sua própria mortalidade. Por vezes, você pode simplesmente expor sua vulnerabilidade e isso pode ser muito libertador.
Você fala de se assumir não apenas como um homem gay, mas em um sentido amplo. Isso também é um jeito de não temer a vida?
Sim. Eu me dei conta de que eu poderia conectar esses vários pensamentos, pensando na realidade como ficção, essas construções sociais. Quando eu estava começando a trabalhar como diretor, eu estava em parte sofrendo, eu odiava esse ato de estar na frente de outros. É tão estressante. Então, eu tive essa ideia de que ser um artista é reencenar o seu “coming out” o tempo todo. E isso se tornou uma metáfora muito útil. Isso ajuda em um sentido microssocial ou micropolítico, sempre dizer: não escute a voz em sua cabeça que quer censurá-lo. Apenas, sabe, vá em frente. É como se assumir o todo, não procrastinar, porque o que você está esperando? Você vai morrer de qualquer maneira. Você não pode evitar que a morte aconteça por procrastinar na vida.
Sobre «The Conversation Project», você também está lidando com essas questões de realidade e identidade. Como está sendo o processo?
Fizemos muitas conversas, mas também escrevemos tantas coisas. E todas as conversas foram transcritas e retrabalhadas repetidas vezes. Eu acho que o processo precisa de muito tempo para ser desenvolvido. Porque não é ficção como um gênero. São duas pessoas falando uma com a outra sobre a realidade. De um lado, nós falamos sobre coisas pessoais, mas também buscamos simplesmente descrever o que está acontecendo em volta da gente. Quando a pandemia chegou, de repente começamos a falar sobre números e ficamos com essa mentalidade estatística, que não estava lá antes. E então, é claro, começamos a fazer interpretações, e isso é uma coisa delicada se você tem intenção de publicar. Porque não é um reality show, eu não acho que seja interessante apenas ter essa ideia de autenticidade.
O processo era principalmente ter conversas, mas vocês também estavam trocando textos?
É uma mistura de ambos. Eu acho que as conversas são a coisa principal. E retrabalhar as conversas. Mas a base é a nossa troca. O que é, claro, o desafio, porque são duas pessoas falando em um espaço hermético, é uma coisa privada. Mas é por isso mesmo que eu acho que está se tornando interessante com o tempo, sabe, falar algo e duas semanas depois isso já não é mais verdade. Essa experiência que todos nós tivemos na pandemia, essa experiência extrema do tempo e como as coisas mudam constantemente.
Além disso, você estava em contextos muito diferentes, você na Europa, Diego na América do Sul.
Sim. E nós temos essa imagem de que, como artista, você tem que olhar além dos seus limites. Mas então você percebe que nós estamos totalmente presos a nossas realidades. Nós não podemos quebrá-las e não podemos acessar a realidade da outra pessoa. Então, eu gosto dessa ideia de investir mais tempo nisso.
E é isso que eu vejo um pouco como a dificuldade ou o desafio de «The Conversation Project», e é por isso que eu acho o projeto interessante. O que o torna realmente empolgante é a sua duração e a ideia de que não é uma troca típica, que dá para ver como as coisas mudam através do tempo. Não como um romance, mas de um ponto de vista artístico. Esse é um pensamento animador, mesmo que no final seja apenas uma conversa entre duas pessoas falando sobre o mundo.